Gonçalo Câmara: "Hoje em dia tu não fazes apenas uma emissão de rádio. Não podes, se não morres"

09-06-2018

É locutor e coordenador de programas na M80. A sua vida vai-se movendo por palavras. Sejam elas escritas ou faladas

Gonçalo Trindade Gago da Câmara nasceu em Lisboa e tem 28 anos de idade. Depois de 10 anos na Cidade FM, passa a estar "no ar" com a M80. Do pai, herdou a paciência. Da mãe, o gosto pelas letras. Mas a paixão pela rádio - essa - não a herdou de ninguém e as luzes da televisão nunca o fascinaram: "há quem me oiça no chuveiro. Haverá coisa mais íntima do que tomar banho com alguém?"

Licenciado pela Universidade Católica portuguesa, escreve crónicas para o PÚBLICO e é conhecido por ser o autor de "Os Magos do Social", um projeto humorístico que se tornou um fenómeno do Facebook. Co-criador do podcast "Ainda Há Quem Queira Escrever", já entrevistou personalidades como Ricardo Araújo Pereira, Rodrigo Guedes de Carvalho e Marcelo Rebelo de Sousa. Mas hoje, é a vez de Gonçalo dar as respostas. Fá-lo na Rua Sampaio e Pina, nos estúdios da M80, em Lisboa.

Autor do livro "Já Dizia o Outro" - o qual reúne crónicas de sátira social -, Gonçalo é apaixonado por viagens, ao longo das quais gosta de "viver que nem um pobre". De propósito. Descubra porquê.

A primeira pergunta é fácil. Quem é o Gonçalo Câmara?

Ui. Isso não é assim tão fácil [risos]. É um locutor de rádio há 10 anos, sensivelmente. Tem uma casa na costa alentejana, onde gosta de passar os fins-de-semana. Também gosta bastante de escrever e, para além da rádio, dá voz a alguns anúncios de publicidade. Resumidamente, a sua vida vai-se movendo por palavras, sejam elas escritas ou faladas. Tem um cão - Balu - que é labrador e que ainda não fez dois anos. Por isso, tem sido um desafio enorme conviver com um cão que está constantemente excitado e ansioso por correr [risos]. Tem uma família grande da parte do pai e pequena da parte da mãe, portanto complementam-se. 

Os teus pais já tinham feito rádio?

Não, os meus pais nada têm a ver com rádio. O meu pai trabalhou na área de gestão e agora está reformado. A minha mãe é professora de história de arte. Talvez seja daí que vem a minha veia das letras. Sempre fui muito mau com os números, daí eles nunca terem sido uma opção. Do meu pai, talvez lhe tenha herdado a paciência. Sou uma pessoa muito paciente e gosto muito de viajar.

Eu sei, eu fiz o trabalho de casa.

[Risos].

Dizes ser mau com números, mas estudaste economia no secundário.

Sim, porque eu na altura pensava que seria abrangente à área de gestão. Sabia que gostava de contar histórias, mas nunca me imaginei a tirar um curso de comunicação no futuro. Pensava que, com um curso de gestão, podia trabalhar num sítio qualquer. Até que, numa conversa com um amigo, ele diz-me "então, mas tu não sabes fazer contas" [risos]. "Não percebes nada de matemática, como é que vais tirar um curso de gestão?", perguntou-me ele. Aquilo começou a remoer dentro da minha cabeça, porque sou uma nódoa, de facto. Então continuei na mesma área durante o secundário - porque já estava no 11º ano - e decidi optar pela comunicação no ensino superior.

"Sempre gostei muito de contar histórias"

Recuemos um pouco no tempo. Que recordações guardas da tua infância?

Da infância guardo coisas muito boas. Eu sempre vivi em Lisboa, mas tenho uma costela açoriana, porque o meu pai é dos Açores. Portanto, há vinte e oito anos que passo o verão na ilha de São Miguel. Recordo muito a minha infância lá.

A rádio já te fascinava nessa altura?

A rádio apareceu mais tarde. Eu sempre fui uma pessoa com uma certa sensibilidade, capaz de agarrar os pormenores das coisas. E sempre gostei muito de contar histórias. Na altura, não sabia que a rádio era o veículo e o meio para o fazer, mas já conseguia perceber que havia uma certa ligação com a comunicação. Isso sim, vem desde criança. Não te sei bem dizer desde quando. Mas desde miúdo que gosto de inventar, ficcionar.

Quando é que a vontade de fazer rádio aparece?

A vontade de fazer rádio chega com o início do segundo ano de curso. Na altura soube, através de uma amiga, que a Cidade FM estava a recrutar para formação. Esta consistia em três semanas e nós éramos sete pessoas. Disseram-nos que, no final da formação, as pessoas que se tivessem demonstrado capazes poderiam ser solicitadas a fazer seis meses de estágio. Eu achei desafiante, então inscrevi-me. Para grande felicidade minha, três semanas depois, recebi o convite para estagiar.

Que memórias ficam desses seis meses?

Esses seis meses foram espetaculares porque aprendi muito. Desde passar por vários horários, a fazer reportagens, estúdio, backup, produção. O estágio tornou-se uma aprendizagem ainda maior a partir do momento em que eu estava a complementar tudo com os estudos. Mas, ao mesmo tempo que complementava, estava a entrar em conflito, porque certas coisas que eu aprendia na faculdade não via acontecer na vida real. Guardo muito na memória aquilo que é teórico e que é prático, mas enfim, neste caso, só se tratava de rádio - nunca tinha trabalhado noutro sítio até então. Só conhecia esta realidade, mas saí daqui uma pessoa completamente diferente.

E mais tarde houve uma vaga para ficares na Cidade.

Sim. Em Outubro de 2008, para minha sorte, o vento estava do meu lado. Abriu uma vaga e eu aceitei logo. Desde essa altura - em que me contrataram para ficar na Cidade, como locutor - passei novamente por um processo de aprendizagem. Fiz programas da manhã, fiz tudo aquilo que podes imaginar. Tudo o que se pode fazer numa estação de rádio, eu fiz.

"Estou-me pouco borrifando para a televisão. O que eu quero é rádio!"

Passados 10 anos, mudaste para a M80.

Exatamente. Cheguei aqui no dia 28 de março.

O que levou a essa mudança?

Eu entrei na Cidade com 18 anos, o que significa que eu era a cara chapada do target, porque é uma rádio feita para jovens. Por isso, eu tinha uma grande vantagem em relação às pessoas mais velhas que trabalhavam lá. Tudo o que eu fazia no meu dia-a-dia era o material que iria utilizar no meu trabalho para chegar às pessoas. O quê que aconteceu? Passados dez anos - onde a rádio se mantém jovem e eu já estou adulto - começo a ficar velho para o projeto. Aqui, na M80, voltou a haver a mesma renovação, porque sou a pessoa mais jovem. A M80 está a renovar-se bastante, nomeadamente no digital. Por isso agora sou o target da M80: pessoas dos 30's para cima.

Quais são as principais diferenças entre ser um locutor da Cidade e da M80?

Por haver um target diferente, a música também é diferente. Mas há coisas que eu fazia na Cidade que também posso fazer aqui. Há certos tipos de conteúdo que são transversais às gerações, como chegar atrasado porque está trânsito, por exemplo. O mood das pessoas à segunda-feira acontece tanto numa menina de 16 anos como numa pessoa de 40 que vai a caminho do seu trabalho. Nesse sentido, há conteúdos que se completam da Cidade até aqui. Por isso, é um target diferente, mas a forma de comunicar não é assim tão diferente.

A que horas é que normalmente chegas ao estúdio?

A minha emissão começa às 11 da manhã e termina às 14h. Chego ao estúdio às 10h40, porque nessa altura a Vanda e o Paulo já acabaram o programa da manhã.

Achas que quem faz rádio fá-lo porque é isso que realmente pretende - fazer rádio - ou há quem faça rádio para chegar a outros meios, como a televisão?

Hoje em dia, em 2018, tens duas vertentes. Por um lado, tens as pessoas como eu, que não querem ir para a televisão e que nunca sonharam com isso. Sempre estive na rádio porque adoro e acredito que existem muitas pessoas a pensar como eu, sejam mais velhos ou mais novos. Mas há quem se sirva da rádio - e o servir aqui não é pejorativo - para um dia chegar a fazer outras coisas. Quando eu estava na Cidade vi muita gente a fazer rádio para um dia apresentar - vamos imaginar - um Curto Circuito. Na rádio ganhas bastantes bases de comunicação, o que é bom. Portanto, tens estes dois tipos de pessoas. Algumas como eu, que me estou pouco borrifando para a televisão [risos]. O que eu quero é rádio, é isso que me fascina e que me move todos os dias. Mas depois, tens aquelas que também gostam de rádio, mas que a televisão é claramente a luz ao fundo do túnel.

Num mundo onde existem cada vez mais ecrãs, a rádio tem ganho ou perdido importância?

Isso é uma pergunta muito interessante. Eu penso que a rádio está mais viva do que nunca. Porque antigamente tu só tinhas a rádio. Fosse para consumir informação ou histórias. Ou seja, ias a um restaurante e só tinhas um prato, agora chegas ao mesmo restaurante e tens mil e um pratos. No caso da M80, por exemplo: a M80 tem como concorrentes a Renascença, a TSF, a Antena 1. Hoje em dia, a M80 também é concorrente de um Spotify, de um Observador, de uma Time Out. Com as redes sociais, o consumo dos media veio diversificar-se imenso, tornando tudo mais desafiante. A rádio não pode parar de se adaptar ao digital e por isso é que ela é muito mais do que o FM, hoje em dia. Tu não fazes apenas uma emissão de rádio. Não podes, se não morres. Se tu fizeres um programa apenas para quem está no carro, já estás a perder. Ao mesmo tempo que estás no FM, tens de canalizar os conteúdos para dentro do digital, complementar o que disseste no ar com uma imagem de Facebook, pedir às pessoas para comentar e leres os comentários no FM. No fundo, tens de dar ao ouvinte que gosta de rádio outras formas de a consumir.

Qual é, para ti, a grande vantagem da rádio?

A própria relação que ela cria com quem a ouve. Não há outro meio que seja tão ou mais próximo que a rádio, porque falas ao ouvido da pessoa. Há pessoas que regem a sua vida pela rádio. Dando-te o exemplo da Rádio Comercial, que tinha a Mixórdia de Temáticas: havia pessoas que estavam em casa e, ao ouvir o Ricardo Araújo Pereira, pensavam "caramba, está a dar a mixórdia, o que significa que são 8h45 da manhã e eu ainda estou em casa." Há muita gente a fazer isto, a reger a sua vida com conteúdos de rádio. Quando eu fazia manhãs na Cidade, diziam-me: "Gonçalo, a primeira coisa que faço de manhã é ouvir a Cidade quando estou a tomar banho". Epá, haverá coisa mais íntima do que tomar banho com alguém? [risos]. Por isso, é um meio muito próximo, que nem a televisão nem os jornais conseguem ter.

Para além da rádio, gostas muito de escrever e viajar.

Sim, gosto muito dessas duas coisas e elas complementam-se, em certa medida, porque também viajo para escrever.

Normalmente viajas sozinho ou acompanhado?

Neste momento, se tivermos em conta todas as viagens que fiz, está empatado. Mas em questões de preferência, prefiro viajar sozinho porque gosto muito de estar assim. Sozinho. Quando o faço acompanhado, é sempre com os mesmos dois amigos, que têm o mesmo espírito que eu: ir para sítios pouco explorados turisticamente e viver que nem pobres. Mas de propósito. Achamos que só dessa forma conseguimos sentir o que um residente sente. Gostamos do desconforto e do perigo de nem sabermos se temos sítio para dormir. Acho que isso é que faz a verdadeira experiência.

A tua última viagem foi à China, da qual regressaste em meados de maio. Porquê a China?

A China foi um plano B. Porque o plano A seria irmos ao Irão, que é um país que nós queremos conhecer bastante. O quê que aconteceu? O Irão esteve à beira de uma guerra civil e, na altura em que íamos marcar viagem, ligámos para a embaixada e disseram-nos que era melhor esperar. De repente, o Irão ficou para outra e demos como opção a China, porque a Ásia fascina-nos. Ainda bem que fui lá, porque a China é a verdadeira Ásia. É um país muito completo.

Numa crónica para o PÚBLICO, escreveste "sinto que fiz um mestrado em comunicação nos 25 dias de China".

Isso foi uma forma simpática de colocar a questão, porque é um grande obstáculo comunicar na China, principalmente através da linguagem. Nós podemos comunicar de várias formas, mas naquele país, através da linguagem, era um repleto martírio, porque eles não sabem falar inglês e acontece que eu também não sei nada de mandarim [risos]. Mas é um povo tecnologicamente muito avançado e cada pessoa, seja ela uma criança de 5 anos ou um idoso de 80, tem um smartphone com um tradutor incorporado. O mais engraçado, nisto tudo, foi eu perceber que havia pessoas que descartavam o tradutor e que queriam mesmo entrar em contacto comigo. Por isso, era tudo com base em gestos. Se hoje eu jogar Party and Company, ganhei. Na parte da mímica já ninguém me ganha [risos]. E o melhor disso tudo é que tu não compreendes nada do que a pessoa está a dizer, mas compreendes tudo o que ela está a tentar dizer.

"Made in China" - lê a crónica do Gonçalo aqui:

Depois dessa viagem, deves estar pronto para escrever outro livro.

A China fascinou-me no que toca a poesia. Na verdade, recentemente escrevi dois livros, um de poesia - "Entre o Deserto e a Montanha" - e outro de viagens - "O Homem que não enviava cartas" - que é um romance baseado nas últimas três viagens que fiz (exceto a China). Agora, qual dos dois virá primeiro, não sei. É uma decisão da editora.

"Numa altura em que toda a gente é blogger, toda a gente faz vlogs e toda a gente é influencer, penso que a escrita se está a perder"

Sempre tiveste o gosto pela escrita? E pela leitura?

O gosto pela escrita é muito anterior ao gosto pela rádio. Eu já escrevia imenso, mas em pequeno não li muito. Houve uma fase da minha vida em que me deu um clique qualquer. Quando já nem precisava de ler, comecei a ler. Mas também comecei a ler porque tu não consegues escrever - ou escrever bem - sem um background de leitura. Por isso, uma coisa levou à outra. Com a vontade de escrever, começas a ter mais vontade de ler e com a vontade de ler tens vontade de escrever.

Recentemente, tu e o Nelson Nunes lançaram um podcast semanal, "Ainda Há Quem Queira Escrever". Essa ideia de falar sobre a escrita enquanto se está a fazer rádio deve ser fantástico para alguém como tu.

É o melhor dos dois mundos. Esse projeto foi uma ideia do Nelson, que também é autor de livros. Ele é uma pessoa que não gosta de estar parada e que, quanto mais coisas tiver para fazer, melhor. Ele convidou-me, eu aceitei, dei-lhe o título, ele adorou. Inicialmente, seriam apenas dois jovens autores à conversa sobre a escrita, até que achámos que seria giro convidar autores já consagrados. Muito mais do que falar sobre livros, o podcast serve para tu poderes falar às pessoas que gostam de escrever e que se calhar não têm tanta coragem de publicar. Numa altura em que toda a gente é blogger, toda a gente faz vlogs e toda a gente é influencer, penso que a escrita se está a perder. No fundo, é um alerta para pessoas que ainda querem escrever.

"Ainda Há Quem Queira Escrever" - ouve o podcast aqui:

Depois de 10 anos de rádio - onde, como afirmaste, fizeste de tudo e mais alguma coisa - e agora com este podcast, diz-me: o quê que te falta fazer na rádio?

Eu gostava de fazer uma espécie de documentários, autênticas reportagens em rádio. Mas seria difícil, porque uma coisa é uma hora de música, outra muito diferente é uma hora palavrosa. Mas vamos imaginar um documentário, cheio de locução, mas com muito som: de pessoas, água, animais. Mas é daquelas coisas que exige muito tempo de preparação, de reportagem, montagem, pelo que teria de sair do ar durante algum tempo para concretizar.

Se a rádio não existisse, onde é que estarias hoje?

Provavelmente estaria numa redação qualquer. Se não existisse comunicação ou esse fascínio na minha vida... não sei. Talvez me dedicasse ao turismo rural.

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